Trilha sonora para mídia interativa: quais suas características?
Quê diferenças existem entre uma trilha sonora para as mídias ditas convencionais e a mídia interativa, em especial para o videogame? Observamos o termo áudio interativo, que pode sugerir que a música seria modificável pela vontade do usuário. Temos também o pomposo "sound design", ao meu ver um termo equivocado, que quer dizer, na verdade, projeto ou engenharia de som, sonoplastia ou simplesmente música. O que é uma "trilha interativa", afinal?
Antes, vamos eliminar deste esboço os jogos experimentais, demos†, peças publicitárias on-line e alguns tipos de games musicais que eventualmente tenham em sua mecânica algum tipo de modificação efetiva no áudio. Eles são exceções. O que eu quero sugerir aqui é a reflexão sobre algumas características gerais da "trilha interativa" (um termo também confuso, concordo) em relação à outras mídias.
Se percorrermos uma série de álbuns com composições musicais para videogames atuais iremos notar que não é incomum registros de obras em múltiplos discos: álbuns duplos, triplos, quádruplos até. Esta observação, relativa à extensão do trabalho como um todo, não é igual no cinema, com um volume significativamente menor de minutos sonoros.
Temos aqui, então, uma primeira distinção: a quantidade. Falemos em termos gerais e grosseiros: uma obra cinematográfica média, exigiria, em uma situação forçada, duas horas contínuas de música. Além disso, as cenas pedem apenas trechos editados das faixas e mesmo muitas músicas originais† podem apenas ser apreciadas por completo nos CDs, exceto claro, nos filmes de musicais.
Já concluir linearmente um jogo eletrônico atual de forma "humanamente" convencional, considerando as dificuldades, a curiosidade de exploração, o cansaço e as interrupções etc., podemos facilmente superar a duração de um filme. Mesmo eliminando as repetições das músicas, justificaríamos o maior tempo linear das trilha para jogos.
O.k., as trilhas de jogos são obras potencialmente mais extensas. Mas o que mais diferencia uma trilha sonora quando executada em um produto dito não-linear, como são os produtos eletrônicos?
Primeiro, um parênteses. Mesmo que exista um discurso geral atribuindo a não-linearidade à produtos eletrônicos e interativos, essa característica pode ser, na verdade, meramente ilusória na produção e na prática. A não-linearidade, em sua definição extrema, nos traduz uma aleatoriedade tal que não é possível determinar qual será a sequência de eventos em uma jornada qualquer. Um ponto de partida pode ter destinos completamente diferentes se percorrida pelos caminhos não-lineares: para isso, múltiplas alternativas deveriam ser exponencialmente apresentada ao avatar, possibilitando um intrincado número de direções/conclusões.
A pura existência de um roteiro determina – com maior ou menor flexibilidade de variação – as linhas que os eventos devem percorrer. Seja por questões criativas, orçamentais e até de tecnologia, um jogo com um razoável leque de possibilidades decisórias tende a ser inviável. No âmbito produtivo, um formato minimamente próximo da não-linearidade pode ser considerado um dispêndio de energia, já que áreas/momentos/fases desenvolvidas simplesmente jamais serão apresentadas a determinado jogador, em uma partida.
O que acontece então, na prática, é apenas a ilusão de liberdade do avatar, quando o jogador está, na verdade, sendo conduzido a um percurso que afunila para destino(s) bem definido(s). E no final das contas, o roteiro de um jogo será, se observado com distanciamento, até bastante linear:
- início;
- desenvolvimento de fases;
- áreas especiais;
- finais de fases;
- a evolução como prêmio e
- final com eventuais variações.
Fechando esse parênteses, uma trilha sonora de videogame, então, deve também conter determinado grau de flexibilidade de execução.
No cinema – entenda como toda a gama de produções relativas: longa ou curta-metragem, documentário etc. – a trilha é pontuada com precisão, inclusive por vezes funcionando em sincronia com o ritmo visual. Na história do cinema, as antigas animações tinham na trilha o papel de "sonoplastia plástica", onde os instrumentos mimetizam as ações na tela ou reforçavam mensagens de forma explícita. Ou seja, há aqui o controle exato da aparição da trilha em relação a determinado momento da imagem. Na publicidade, personificada aqui nos comerciais multimídia, acontece o mesmo. É o ambiente controlado.
Mesmo em apresentações com certo grau de improviso, como o teatro, o circo, shows de ilusionismo ou nas diversas formas de performance artística, a trilha é inserida com razoável grau de controle, pois de antemão sabe-se quê acontecimentos virão e quando, permitindo tal planejamento. Nos videogames, no entanto, essa sincronia é menor, pois não se pode prever as decisões do jogador – exceto sinalizando quando elas já aconteceram. Mas não se pode pontuar sonoramente cada pequena modificação do avatar e "arriscado" é musicalizar um evento que pode nem acontecer!
Acontece então que os eventos importantes disparados como resultado direto ou indireto das ações do usuário serão fatores modificadores da trilha. A partir destes eventos, uma série de possibilidades envolvendo a música podem acontecer:
- do silêncio, uma faixa pode ser iniciada;
- uma faixa em execução pode sofrer algum tipo de modificação;
- uma faixa pode entrar em execução no lugar da atual e
- a música pode ser interrompida.
Uma situação de modificação é aquela onde a faixa atual é suspensa pela inserção de um símbolo sonoro†, e em seguida, volta a sua execução normal. É o típico caso, por exemplo, de quando o avatar adquire um elemento agregador importante, como uma chave ou um tesouro. Mas também a ausência destes eventos é um complicador para a "trilha interativa": na ausência de acontecimentos modificadores, encerrando-se uma faixa ela deve repetir-se (ou executar uma outra, de forma aleatória).
Porém, a qualidade de "trilha interativa" (estou sempre usando entre aspas até encontrar terminologia melhor) pode ficar mais evidente no caso de composições modulares. Explico: uma música modular pode conter áreas de loop em si mesma. Veja abaixo o exemplo de um algoritmo fictício da execução de uma música modular:
- 1. executar introdução geral – vai para 2.1;
- 2.1. executar introdução da parte A – vai para 2.2;
- 2.2. executar parte A – repete 2.2 até que aconteça o evento modificador 1;
- acontecendo o evento modificador 1 – vai para 3.1;
- 3.1. executar introdução da parte B – vai para 3.2;
- 3.2. executar parte B – repete 3.2 até que aconteça o evento modificador 2;
- acontecendo o evento modificador 2 – vai para 4;
- 4. executar final geral.
A música – que eu chamei de modular – torna viável o "áudio interativo", ou seja, uma composição maior, com momentos distintos mas com linguagem musical (harmonia, gênero, instrumentação etc.) integrada entre as conexões dos seus módulos, pode suprir com naturalidade vários momentos, ações, sinais etc. de um jogo (ou de um momento do jogo), pois transita com respeito técnico e estético entre suas partes, dando a impressão de que o jogador "personaliza" o andamento da música pela sua forma pessoal de atuar na história.
Em um filme, o compositor pode ser acionado para criar um tema específico e que servirá para ambientar um momento previamente determinado, inclusive cronometrado. Para os jogos eletrônicos – desconsiderando os momentos de animação passiva – o compositor precisa levar em consideração os fatores de ocorrência imprevisível misturando-se com a sua música.
É preciso não separar totalmente a composição musical da sonoplastia. Há casos onde a trilha sonora de gênero contemporâneo, ou onde a instrumentação seja tal, que confunde-se com efeito sonoro. Trilhas mais alternativas, com momentos destoantes ou sons disformes podem alarmar falsamente o jogador, gerando um ruído na comunicação sonora, trocadilho à parte. Há um cuidado extra, então, a respeito dos contrastes entre música original, música diagética†, símbolo sonoro, som ambiente, efeito sonoro etc.
Concluindo, além da questão da métrica entre as trilhas de mídias tradicionais em relação às eletrônicas, eu acredito que são as intervenções "externas" – os eventos modificadores da própria interatividade – que alteram a forma como as trilhas para games são feitas e consumidas. Se uma determinada faixa irá se repetir várias vezes, ela poderia não ter um início e fim tão marcados, mas fazê-los até em forma de loop, que se conectam entre si, ao repetir-se.
Nas mídias tradicionais, onde a sincronia de eventos é perfeitamente possível – seja partido da imagem pronta para o áudio, ou a partir do áudio pronto para a imagem – existe a possibilidade de um "investimento criativo" maior, já que, como mencionei, o ambiente é controlado. Momentos específicos da música podem ser criados para ilustrar cenas. Por exemplo, um personagem importante será morto em um futuro breve: a trilha pode previamente ir sinalizando sutilmente o perigo, crescendo em tensão, até o desfecho maior com o trágico fato consumado. Em uma ação interativa, o controle criativo, a qualidade estética do resultado, fogem do desejo preciso do autor e é esse grau de flexibilidade que acredito residir a base das diferenças da questão que coloquei no início deste artigo.
Essa diferença, que hoje pode ser considerada uma dificuldade ou uma limitação, pela falta de maturidade no domínio de expressividade na linguagem eletrônica-interativa – haja visto sua pouca idade – um dia ainda será uma grande vantagem em favor da criação artística, da fruição estética e também de imersão.
5 comentários:
Achei bem interessante seu texto e suas observações Alexo. Essa "trilha interativa" realmente guarda diferenças significativas em relação às outras mídias.
Mas gostaria de comentar a respeito da diferença no ato de consumir. O fato de saber como será a ação de um personagem dá mais liberdade criativa ao compositor, mas estive pensando e não encontrei um exemplo no qual o consumidor saiba o que vai acontecer. Nem em um jogo de videogame, nem em um filme.
Em um filme, por exemplo, pode existir um tema que apareça sempre em loop em determinados momentos semelhantes e que, em um álbum poderia ser mais explorado. Ou um leitmotiv que dure os segundos de aparição de determinado personagem e no álbum com a trilha sonora tenha minutos e minutos de duração.
Claro que, assistindo um filme repetidamente, dá pra decorar como a trilha vai aparecer e quando, e jogando videogame pode não acontecer o mesmo. Mas ao jogar novamente as mesmas fases tendemos a ter cada vez mais as mesmas ações, o que faz a trilha também se repetir.
A questão então é: qual seria a real diferença na audição, no ato de consumir essa música?
Salve, André. Só explicando o seu comentário, sobre conhecer de antemão situações que serão musicalizadas, eu me referia ao posto do *compositor* (em tempo de produção) e não do consumidor (já que este faz o papel de receptor da comunicação).
Claro, e você deixou isso bem claro. Tanto que comungo das suas observações durante o texto. Apenas peguei um trecho e quis comentar sobre ele (e que você comentasse também, claro). É esse:
"eu acredito que são as intervenções "externas" – os eventos modificadores da própria interatividade – que alteram a forma como as trilhas para games são feitas e consumidas"
Porém acho que foi o único momento em que mencionou o ato de consumir. Talvez falar só disso seria assunto pra outro texto. Algo como a diferença real para o consumidor.
Verdade. Sem me dar conta, o raciocínio geral ficou mais em torno do trabalho de criação mesmo.
E, afinal, o que é "consumir" do ponto de vista do jogador? Imersão? Relação afetiva? A pura apreciação? Apreciação pós-jogo?
E, fora o que nos interessa como consumidores, quais as intenções artísticas, comerciais, comunicativas das trilhas? Ambientar o jogador, emocioná-lo, aumentar sua imersão, gerar publicidade, produzir nele empatia para com o produto, personagens, roteiro, objetivos do jogo?
Daria outro um novo texto meesmo :)
Daria outro texto e talvez até mais complexo pela subjetividade, eu acho.
Postar um comentário